domingo, 23 de maio de 2010

Guardas de passagens de nível. Uma vida a ver passar comboios


Há 11 anos eram mais de 900. Restam 190. Nos próximos anos, a profissão morrerá, com a modernização das linhas e das passagens de nível
Linha do Norte, passagem de nível ao quilómetro 310. Cecília Pereira fala pelo cotovelos - é uma "metralhadora" de palavras. É guarda de passagem de nível (PN) em Esmoriz e não tem mãos a medir com o trabalho. Por dia, passam na PN ao quilómetro 310 da linha do norte 210 comboios. Cecília conta 30 anos de carreira à beira da linha e tem assistido às sucessivas introduções de tecnologia no serviço. Antes, tinha de baixar as cancelas manualmente. Agora, já são automáticas. Mas as inovações que lhe facilitaram a vida nos últimos anos vão ditar, em breve, a extinção do seu posto de trabalho.

Assim que estiver terminada a modernização do troço que liga Ovar a Vila Nova de Gaia - as obras devem arrancar em 2011 -, Cecília Pereira deixará de ser guarda de passagem de nível e irá juntar-se às estatísticas da Refer: em 1999 existiam 908 guardas, espalhadas por todo o país. Hoje, são apenas 190. O objectivo da empresa é "reduzir a sinistralidade". E se em 1999 foram registados 154 acidentes em passagens de nível, hoje o número é bem inferior. No ano passado, aconteceram apenas 49.

Na passagem de nível de Esmoriz, Cecília reveza-se com outra colega para garantir a vigilância entre as oito da manhã e as oito da noite. Antes de chegarem a uma PN, os comboios pisam um sensor no carril, que faz disparar as campainhas e ordena o fecho das cancelas. É então que Cecília sai da barraca, pega na bandeira vermelha, enrolada, e faz sinal ao maquinista, em sentido. O gesto significa que todo o sistema de circulação está operacional e que a PN está livre de obstáculos.

Um dia, fartou-se de acenar aos comboios e resolveu contá-los. "Só das 10 da manhã às 10 da noite contei 91", garante. Porque a profissão exige "responsabilidade e atenção permanente", Cecília prefere abdicar da televisão na barraca onde se abriga. Às vezes, aborrece-se e "as horas custam a passar". Especialmente agora, que já é quase tudo automático. Mas o pior do trabalho - em vias de extinção - são mesmo as campainhas, que se repetem, monocórdicas, centenas de vezes por dia, antes da chegada de cada comboio. "Houve uma altura em que não aguentava mais o barulho. Ia morrendo da cabeça e tive de tomar medicação", recorda. Cecília admite que é uma profissão "difícil". Mas acrescenta: "Foi a que escolhi." Por ser a mais velha de todos os irmãos, teve de se fazer à vida aos 12 anos. Com 24, "andava à hora nas limpezas". A Laura, uma amiga da patroa, era guarda de PN e emigrou para a Venezuela. O lugar ficou vago e, em 1980, Cecília tornava-se substituta - fazia as folgas e as férias das guardas efectivas em Canelas (Gaia). No primeiro dia de trabalho, vestiu uma "saia da moda ao xadrez bege e castanho", que encomendou de propósito a uma modista. Em 30 anos, passou por várias passagens de nível: em Avanca, Oliveira do Bairro, Granja. Tantas que não sabe "enumerar de cor". Durante uma década, fez turnos nocturnos. "Noites em que só se ouvia, no meio do escuro, o barulho do ladrar dos cães e das canas que antigamente havia à beira das linhas do comboio, a sacudirem-se ao vento." Era o tempo em que tinha de carregar as cancelas às costas e desdobrar-se em telefonemas para a estação mais próxima, para avisar se os comboios passavam na PN à tabela.

O que nunca muda, garante, é o facto da passagem de nível ser "um confessionário" e um ponto de passagem "insubstituível". Cecília está habituada à convivência com quem por ali passa, todos os dias. Há os vizinhos, os "bêbedos do costume", os mendigos que vão à procura de esmola. As crianças da escola que exigem atenção redobrada ao atravessar a linha. Os automobolistas que pedem indicações. E, inevitavelmente, os condutores que se irritam quando as cancelas baixam e é preciso esperar. Nessas situações - e porque está ali para garantir a segurança -, Cecília não tem papas na língua. "Alguns insultam-me e já me gritaram: 'Ainda o comboio vai no Porto e tu já estás a fechar a cancela'. E eu às vezes respondo à letra e mando-os comprar umas asinhas e voar por cima", conta. Aliás, segundo a Refer, 95% dos acidentes devem-se à falta de civismo e ao não cumprimento da sinalização. Cecília confirma: "Muitos armam-se em atletas, tentam contornar as barreiras e às vezes corre mal." Apesar de tudo, em 30 anos de serviço nunca teve nenhum dissabor - à excepção do assalto que a barraca sofreu, não há muito tempo: os ladrões levaram-lhe o micro-ondas, uma cadeira e uma ventoínha.

Linha de Cascais, PN ao Km 22,556 Em S. João do Estoril, Maria do Carmo está longe das origens. Ela, que é de Vila Real de Trás-os-Montes. Tem 47 anos e é guarda há 25 - nunca teve outra profissão. Em 1985, começou como substituta na PN de Paço de Arcos. Estava longe de adivinhar que 17 anos depois, em 2002, na de Santos, assistiria à morte instantânea de seis rapazes. "Puseram-se a fazer uma corrida ao lado do comboio. A ideia deles era chegar à passagem de nível antes do maquinista e conseguir atravessar a passagem de nível à frente do comboio", recorda. Tinha acabado de entrar ao serviço, às 6h30, e não se esquece do momento em que o carro foi abalroado. "Depois, ficou completamente desfeito e fez-se silêncio."

Maria do Carmo garante que ultrapassou o choque e, nos últimos anos, assume o comando da única passagem de nível da linha de Cascais com guarda. E que, além disso, ainda tem outra particularidade: é a única do país onde a bandeira que ostenta é verde e não vermelha. Porque quando a linha de Cascais apareceu foi concessionada pela Sociedade Estoril que tinha uma regulamentação muito própria. "Eficaz, mas mais ligeira em termos de procedimento", explica o inspector de circulação da linha, José Rodrigues. Na PN de S. João do Estoril passam 110 comboios por dia. Assim que seja construída uma passagem inferior para peões junto à estação - já protocolada com a Câmara de Cascais - a última representante das guardas naquela linha deixará de ser precisa. O que, garante a Refer, não significa que o vínculo à empresa se extinga. "Tentamos a reintegração em novas funções. Há antigas PN a exercer tarefas de secretariado, de triagem de correspondência, entre outros serviços."

Linha do Norte, PN ao Km 3,594 Poço do Bispo, Lisboa. É quase hora de almoço. A campainha da PN dispara de repente, as cancelas fecham-se e uma idosa arrisca e passa a barreira para chegar ao outro lado da linha. Caminha devagar, com uma muleta na mão direita e uma pequena botija de gás na mão esquerda. Aida Esteves, a guarda da PN, abana a cabeça em jeito reprovador e aproveita para explicar que este é um comportamento frequente e de evitar. "Pensam que conseguem ter tempo para passar, mas às vezes há azares", resmunga. Em Poço de Bispo, a PN é ponto de passagem de muitos idosos do bairro de Marvila. "E os hábitos estão tão enraizados que é difícil sensibilizar para a questão da segurança", conta. Aida é uma das poucas e últimas verdadeiras guardas de passagem de nível - ainda tem de dar à manivela para baixar as cancelas. Acena à passagem dos comboios com a bandeira na mão direita e uma lata de petardos e uma corneta na esquerda - objectos que quase já não têm utilidade. "A corneta servia para ajudar os maquinistas a fazer manobras e os petardos encaixam-se nos carris em caso de anomalia e rebentam à passagem do comboio, avisando o maquinista de que deve parar."

Assim que o TGV chegar, a missão de Aida, agora com 47 anos, termina e a linha será modernizada e automatizada. E depois? "Estou mentalizada para o fim. Não sei o que irei fazer, mas quero continuar na empresa. A minha vida foi toda isto, os comboios."

por Rosa Ramos

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