Carta aberta a Miguel Sousa Tavares
Estimado Senhor Dr. Miguel Sousa Tavares.
Muito o tenho admirado, pelas suas intervenções jornalísticas e pelo seu relevante contributo para a generalização do gosto pela leitura entre os portugueses.
É por motivo dessa admiração que muito mais me doeu ler o que a respeito da CP assinou em artigo de opinião publicado no Expresso do último Sábado, 24 de Abril.
Parafraseando uma crónica no Público de Helena Matos, escreve que, numa altura em que os aeroportos nacionais registavam dificuldades de funcionamento, “a CP não organizou comboios extras, mas, pior do que isso, manteve, imperturbável, a mesma única bilheteira da estação a funcionar [Santa Apolónia], perante filas intermináveis de pessoas, crianças incluídas, horas à espera. O espectáculo foi, de facto, intolerável. De incompetência, de desdém, de falta de respeito".
Estou certo que se tivesse tido a oportunidade de se inteirar melhor acerca das condicionantes da operação ferroviária internacional não teria dado por assente uma opinião que não se radica no conhecimento, mesmo que elementar, dessa realidade.
Porque sei que preza a competência e o rigor, acredito que gostará de conhecer as condicionantes que impediram o caminho-de-ferro de responder mais eficazmente ao desafio da catástrofe natural que se abateu sobre os céus da Europa.
Como sabe, o “Sud-Express” é um “serviço” que faz a ligação entre Lisboa e Paris, não de uma forma directa, mas sim com recurso a uma composição de carruagens rebocadas por uma locomotiva eléctrica da CP entre Lisboa e Vilar Formoso,
rebocadas por uma locomotiva Diesel espanhola a partir de aí e, uma mudança para um comboio de alta velocidade (TGV) francês em Hendaye com destino final a Paris.
Isto é assim porque ainda não estão criadas condições de interoperabilidade no caminho-de-ferro entre Portugal e Espanha (diferenças de alimentação eléctrica da catenária, diferenças de sistemas de sinalização e de segurança, ausência de certificação de maquinistas) e, além disso, porque a bitola (distância entre carris) da linha ferroviária não é a mesma além Pirinéus.
Por estas razões a “montagem” do serviço “Sud Express” e da sua continuidade até Paris é completamente dependente da boa cooperação entre os operadores desses três países (CP, RENFE e SNCF), não sendo possível à CP alterar por sua exclusiva iniciativa a dimensão, os ritmos, e as frequências da oferta e a própria reserva e venda de títulos de transporte.
Qualquer alteração dessa natureza exige a disponibilidade do material dos três operadores e a atribuição de canal de circulação pelas gestoras da infra-estrutura nesses três países.
Por razões que se prendem com a concorrência de outras alternativas de transporte entre Lisboa e Paris, principalmente do transporte aéreo (mais barato e mais rápido), a procura do “Sud Express” tem diminuído ao longo das últimas décadas pelo que não têm havido condições para aumentar a sua oferta e manter uma estrutura de serviços capaz de, em momentos de crise, estar à altura de responder da melhor maneira aos esporádicos e excepcionais aumentos de tráfego daí resultantes.
Entre esses serviços estão as bilheteiras, cuja capacidade de atendimento está fixada para um afluxo normal de passageiros e não para dar resposta a situações totalmente inesperadas e anómalas.
Dimensionar esses serviços de outra forma seria sim uma gestão leviana e censurável.
Ocorre ainda que as bilheteiras dependem de uma estrutura de apoio ao seu funcionamento bastante rígida que não é possível modificar da manhã para a noite.
De facto, a venda de bilhetes internacionais também está dependente dos sistemas informáticos das outras empresas ferroviárias intervenientes na operação, que são distintos dos demais sistemas existentes na CP.
Quer isto dizer que não é possível abrir outras bilheteiras para melhorar o atendimento, pois sem disporem de sistema nada poderão fazer.
Além disso, a venda de um bilhete internacional requer que o agente da empresa tenha tido uma formação especialmente exigente nesse domínio, não sendo racional dá-la a todos os outros trabalhadores da empresa, mas sim apenas aos que usualmente são afectos a tais serviços. Estamos a falar não só do conhecimento dos nossos comboios internacionais, mas também de dar resposta a pedidos de informação e venda dos comboios internacionais nos países subsequentes.
Mesmo nestas circunstâncias e num quadro de greve dos trabalhadores da SNCF, a CP reforçou o Sud Expresso com mais um comboio diário em cada sentido, acrescentando 800 lugares à oferta existente, através da reactivação de material especificamente adaptado, uma vez que, como se compreenderá, nem todas as composições têm condições para ser utilizadas nesse serviço.
Abriu uma bilheteira adicional em Santa Apolónia, prolongou os horários das bilheteiras internacionais de Santa Apolónia e da Gare
do Oriente, colocou postos de informação nos aeroportos de Lisboa, Porto e Faro e manteve em funcionamento todas as bilheteiras de serviço internacional existentes no país.
Foram deste modo mobilizados dezenas de colaboradores para dar apoio especial ao afluxo anormal de passageiros, encaminhando-os para a utilização mais racional dos serviços de atendimento e venda.
Como agora certamente reconhecerá, foi feito o possível para dar resposta à situação e se mais não se fez foi porque não esteve de todo ao alcance da empresa
É por tudo isto que me dói a apreciação que alguns jornalistas fizeram da empresa e dos seus trabalhadores.
É por tudo isto que não posso silenciar uma palavra de indignação pelo atentado ao bom-nome e reputação de todos quantos sacrificaram os seus tempos de descanso para tudo dar para ajudar a resolver o drama de todos quantos acabaram apanhados por uma tragédia inesperada e incontrolável.
É por tudo isto que apelo à sua sensibilidade para se retratar do insulto que acabou de fazer a pessoas que de facto não são e não foram incompetentes, desdenhosas ou desrespeitosas dos seus clientes e da comunidade que servem.
Estou crente que o escritor e jornalista que admiro, não o deixará de fazer.
Com os meus cumprimentos,
José Benoliel,
Vice Presidente do Conselho de Administração da
CP – Comboios de Portugal EPE
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