domingo, 13 de junho de 2010

Os comboios já não param no Alentejo

A automotora é usada diariamente por dezenas de estudantes

O Alentejo perde a ligação intercidades por um ano. Mas a CP decidiu manter as carruagens entre Casa Branca e Beja: eis a viagem com as pessoas que as utilizam há 30 anos


Foi por pouco. A CP tinha anunciado a suspensão da circulação de todos os comboios no troço que liga Casa Branca a Beja, já a partir de segunda-feira, mas recuou na decisão, depois de ouvir as reivindicações dos autarcas da região. Já a suspensão dos intercidades em toda a linha do Alentejo pelo período de um ano é para manter. Tudo por causa das obras de electrificação e modernização da linha que liga Lisboa a Évora. Esta semana o i apanhou o comboio em Casa Branca e viajou até Beja. A automotora Allan, com 96 lugares, desdobra-se em viagens, a rasgar a planície alentejana. Os 58 minutos de trajecto passam a correr e há quem faça a viagem diariamente há 35 anos. E tema pelo fim da linha.

8h18. Casa Branca A estação fica no Largo 1.o de Maio, que liga à Rua 25 de Abril. Casa Branca é um aglomerado de meia dúzia de casas erguidas à beira da linha férrea, mas a afluência de passageiros que chegam das freguesias vizinhas é suficiente para que a taberna Oliveira possa competir, lado a lado, com o café Manuel. Três mulheres, vestidas com batas floridas, estão sentadas em frente à estação. Nenhuma sabe dizer como se chega a Beja de carro. "Mas olhe que não precisa", exclama uma. "Daqui a pouco chega aí o comboio e é um instantinho."

Dentro da automotora Allan os lugares estão quase todos vazios. Maria tem 40 anos e saiu de Lisboa há mais de seis, "cansada da confusão". Arranjou emprego em Beja e todos os dias faz a viagem desde Vendas Novas. Até ao mês passado, antes de o intercidades ter sido suprimido, o percurso era directo. Agora tem de pegar no carro e fazer 30 quilómetros para apanhar o regional em Casa Branca. É temporário, garante a CP. Mas "em Portugal as obras nunca se fazem no tempo previsto, por isso será por muito mais tempo", responde Maria.

Poucos lugares atrás, António Cesário, 71 anos, ajeita a mochila do farnel e entretém-se a descascar laranjas. Reformou- -se "ainda nos anos 90" e dedicou-se à agricultura. Desde 1992 apanha o comboio todos os dias em Pinhal Novo e segue até Vila Nova da Baronia, onde tem estacionado o tractor que o levará à horta. Desde Maio, os intercidades foram substituídos por autocarros. Só em Casa Branca é que António Cesário apanha a automotora. "Assim demoro muito mais tempo, mas não me importo. Quero é que me garantam que consigo vir. Qualquer dia ainda acabam com isto tudo", queixa-se.

8h28. Alcáçovas Luís Rosado, 35 anos, entra apressado no comboio. Destino: Beja. De carro, explica o GNR, seriam 70 quilómetros. "Mais de 150 euros de gasolina por mês, uma renda", garante. Por isso o comboio é indispensável - o passe fica por 69 euros mensais. A automotora começa a encher e Luís partilha o banco com Maria Antónia Serrão e Rosa Ova, de 72 e 62 anos. Seguem, as duas, para Beja: uma vai ao médico, a outra vai visitar a mãe que "está hospitalizada". Não têm o hábito de viajar de carro. "O comboio serve-nos para tratar de tudo", garantem as reformadas. O pior será quando precisarem de ir a Lisboa: com o fim dos intercidades, os passageiros deste troço vêm-se obrigados a descer para sul, até Beja. Só aí poderão apanhar o autocarro que os levará à Gare do Oriente. "Andamos muitos quilómetros para trás e os horários foram mal calculados. Voltar no mesmo dia é quase impossível", contam.

8h41. Vila Nova da Baronia Ao lado do café Boa Viagem, Joaquim Santos, o presidente da junta, garante que a sua estação "mete 50 pessoas" por dia no comboio. Vêm da freguesia e das terras vizinhas. Quando o intercidades desapareceu, liderou um abaixo-assinado "que já foi entregue a quem de direito". "Para que queremos um serviço daqui a um ano se vamos estar um ano sem serviço?", pergunta, antes de começar a explicar que Baronia teve sempre uma "forte ligação" à linha. Chegou a ter "dezenas de ferroviários". Hoje são "uma dúzia" num universo de 1300 habitantes. Os jardins da estação estão perfeitamente arranjados, o que contrasta com as portas verdes de madeira do edifício principal, meio carcomidas. É Vítor Rolim, 54 anos e 26 ao serviço dos comboios, quem cuida do jardim. E da limpeza da estação. E ainda ajuda nas manobras. O pai, também natural de Baronia, já era ferroviário e trabalhava nas obras metálicas. "Pintava pontes e assim." Vítor deixou a escola aos 13 anos. Vendeu peixe, trabalhou nas obras no Algarve, foi funcionário da Câmara do Alvito e ainda foi à tropa. Aos 20 e poucos anos agarrou-se ao ofício do pai. Em "mil nove e oitenta e cinco" tornou-se auxiliar de manobrador. Esteve 13 anos na estação de Bombel, "mas aquilo fechou". Fez oito anos em Maio que está em Baronia. Ver os comboios desaparecer, aos poucos, causa-lhe "alguma tristeza". Sobra o desabafo: "Estou a dez anos da reforma. E se fecham isto?"

8h49. Alvito Desactivada há cerca de 20 anos, a estação fica a quatro quilómetros da vila. O edifício, abandonado, só tem como vizinhança uma fábrica de bagaço. Mesmo assim os comboios continuam a parar e não faltam passageiros. Um homem com quase 40 anos, de mãos dadas com a filha, de quatro, apressa-se para apanhar a automotora. Diz só que vai a Beja "entregar uns documentos à companhia de seguros". À chegada a Alvito a automotora já vai quase cheia. E António Costa, o revisor de 52 anos, que já conta 25 de carreira, garante que "até está pouca gente".

9h00. Cuba É aqui que termina a viagem de António Manhita. Tem 59 anos e faz a linha, diariamente, há 35. Conhece quase todos os passageiros. É revisor de material da CP, esteve a trabalhar de noite e vem do Poceirão, agarrado a um livro de bolso com uma história de cowboys. Agora a viagem até casa demora duas horas - porque desde Maio tem de apanhar o autocarro de substituição até Casa Branca. Cuba é a freguesia com maior tradição de ferroviários em todo o Alentejo - há uns anos eram mais de 50, hoje são 16. Só em casa da família Manhita há dois. O filho de António, Vítor, tem 28 anos e seguiu-lhe as pisadas. "Não entendo porque é que suprimiram os comboios entre Lisboa e Évora. Quando fizeram obras no Sado e no Tua não acabaram com a circulação", critica. E deixa um desabafo: "Se calhar, o intercidades nunca mais vai voltar."

9h14. Beja É o fim da linha e a viagem de Francisca Bicho, professora de História, termina aqui. Veio de Cuba para dar aulas no liceu de Beja. "O Alentejo é sempre esquecido. Ninguém pergunta se o intercidades faz falta. O comboio tem um papel social que não pode ser esquecido", defende. "O problema é que os alentejanos são pacíficos, porque se fosse no Norte isto não tinha ficado assim", avisa. A colega Paula Oliveira, professora de Inglês, embarcou em Baronia e conta que está a equacionar mudar-se para a capital de distrito, "caso os comboios deixem de circular entre Casa Branca e Beja". Não vai ser preciso. A suspensão estava marcada para segunda-feira mas, cinco dias antes, a CP recuou na decisão.



por Rosa Ramos

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