sábado, 6 de fevereiro de 2010

Tarifário da CP desincentiva o uso do comboio do Oeste para o resto do país

A D. GUIDA...

A D. Guida tem 70 anos e vive nas Caldas. Passou um fim-de-semana em Lisboa com uns familiares que a levaram à estação do Rossio para regressar a casa. Fizeram mal. Mais valia ter vindo de autocarro porque a primeira surpresa da D. Guida foi que não podia comprar o bilhete para as Caldas nas bilheteiras do Rossio. Dali só lhe vendiam o título de transporte para o Cacém, onde a passageira teria de atravessar as linhas para comprar um novo bilhete para as Caldas e apanhar outro comboio.
No entanto, em sentido contrario, não há problema nenhum em comprar na estação das Caldas da Rainha um bilhete directo para o Rossio.

A MARIA...
Maria, uma jovem caldense, estudante de Medicina no Porto, regressava à Invicta no domingo à tarde. Apanhou o inter-regional para Coimbra onde contava apanhar o Alfa para Campanhã. Mas como tinha caído uma catenária (cabo de alto tensão que fornece energia eléctrica aos comboios) a circulação estava suspensa e a CP organizou um transbordo rodoviário para Aveiro, onde os passageiros deveriam apanhar o Alfa.
Uma descoordenação entre a CP e a Refer fez, porém, com que o Alfa Pendular partisse antes do autocarro chegar, pelo que os passageiros, uma vez em Aveiro, foram convidados a prosseguir a viagem até ao destino final pelo modo rodoviário.
Farta das voltas do autocarro, Maria optou, no entanto, por ficar em Aveiro e apanhar um comboio regional para o Porto. Não lhe passava pela cabeça que o seu título de transporte para o comboio mais caro da CP não servisse para o ronceiro regional que parava em todas as estações e apeadeiros. Não foi multada pelo revisor, mas teve que pagar 3,50 euros pela "revalidação" do seu bilhete!

...E A MÃE DO JOÃO
O João, 42 anos, pensou que o comboio era o modo de transporte mais adequada para a sua mãe se deslocar do Bombarral para Espinho, onde tem parte da família. Foi ver os horários e ficou a perceber o motivo do slogan da CP na última Bolsa de Turismo de Lisboa - "Aventure-se. Vá de Comboio!".
É que do Bombarral para Espinho a CP oferece três ligações. Uma com cinco (sim, cinco!) comboios, que demora cinco horas e pela qual cobra 16,60 euros. A mais rápida faz-se com quatro comboios durante pouco mais de quatro horas e custa 19,85 euros. A mais cara custa 20,55 euros e é a que demora mais tempo: seis horas e 17 minutos do Bombarral a Espinho com direito a transbordo nas Caldas, Bifurcação de Lares e Coimbra.
O João nem queria acreditar que a viagem fosse tão complicada. E nunca chegou a perceber por que motivo todos os comboios do Bombarral terminam nas Caldas e é preciso mudar para outro exactamente igual para seguir viagem para norte.

DE COMBOIO NUNCA MAIS
Estas três histórias são verdadeiras e mostram à saciedade no que se transformou a burocracia da CP ao ser segmentada em unidades de negócio. CP Lisboa, CP Porto, CP Regional e CP Longo Curso até podem ser uma boa ideia para a empresa se organizar internamente, mas quando ganham vida própria e a sua autonomia vai ao ponto de trabalharem de costas voltadas sem tirar partido do efeito de rede do sistema ferroviário, acontecem estas desajustes que só desincentivam o uso do comboio. A prova é que a Maria nunca mais voltou a comprar um bilhete à CP e passou a ir de autocarro para o Porto. E a D. Guida, apesar de reformada e só pagar meio bilhete na CP, prefere também usar o autocarro das Caldas para Lisboa.
Já o João não passou da consulta aos horários. Nem pensar em deixar a mãe embarcar naquela aventura. E já se habituou a ir levá-la de carro a Espinho.

VIAJAR MENOS E PAGAR MAIS
Vejamos mais um exemplo: das Caldas ao Porto são 265 quilómetros e um passageiro tem de viajar num comboio da CP Regional até Bifurcação de Lares onde apanha outra composição para Coimbra a fim de seguir para Campanhã num comboio rápido. A viagem pode custar 15,90 euros, ou 16,15 ou até 24,90 euros se apanhar o Alfa em Coimbra. Mas um passageiro que faça os 337 quilómetros de Lisboa ao Porto num comboio directo só paga 19,50 euros (27,90 no Alfa Pendular). Ou seja, o cliente do Oeste viaja menos quilómetros, usa comboios de categoria inferior, tem dois transbordos e paga mais do que numa viagem directa de maior distancia. É assim que a CP quer incentivar o uso do comboio?
Das Caldas da Rainha à Guarda (315 quilómetros) paga-se 18,60 euros ou 19,90 euros e é preciso fazer transbordo. Mas de Lisboa à Guarda (387 quilómetros) só se paga 17,00 euros e a viagem é directa.
O mesmo acontece com o exemplo de Espinho. O Bombarral fica a 262 quilómetros daquela cidade, mas o bilhete é mais caro do que uma viagem desde Lisboa, que fica a 318 quilómetros.
Para todos estes casos, o bilhete na Rede de Expressos é sempre mais barato.
Surpreendente? Nem por isso. Um caldense que pague 15,50 euros para ir para o Porto, paga sempre o mesmo, independentemente de mudar em Leiria ou Coimbra ou de ir directo para a Invicta. Mas na CP, por cada viagem e cada transbordo, é como se o passageiro estivesse a comprar um novo bilhete. E é por isso que das Caldas ao Porto o comboio é sempre mais caro do que o autocarro.

UMA VISÃO SEGMENTADA
Tudo isto parece preocupar pouco a administração da CP que aparece dividida nas tais unidade de negócios que possuem a sua própria frota de material circulante e quadro de pessoal (maquinistas e revisores). E cada uma tem também a sua direcção executiva, cujos gestores têm melhores salários, automóvel, cartão para combustível, telemóvel e secretária.
Este modelo torna os custos mais transparentes porque cada unidade de negócios tende a rentabilizar melhor os seus recursos, mas a esta gestão autónoma acaba por faltar uma visão de conjunto, com os resultados que se conhecem para os consumidores, em termos de tarifário, e de horários que não garantem ligações entre comboios.
A transportadora pública, ao contrário do que acontece com as suas congéneres europeias, não tem um contrato de prestação de serviços com o Estado. Em cada ano, o governo atribui uns trocos a título de indemnizações compensatórias para a empresa, que caem no buraco sem fundo do seu défice.
Como o serviço regional é o que dá mais prejuízo, a empresa prefere vender percursos do que aplicar uma tarificação quilométrica, mais justa e mais compreensível pelos passageiros. É por isso que uma viagem com vários transbordos sai mais cara do que se for directa.
Algo que, como refere o caldense Nelson Oliveira, engenheiro com pós-graduação em caminhos-de-ferro, "não acontece noutras redes estrangeiras de referência [SNCF, RENFE, DB, Trenitália] onde os horários dos comboios mais lentos são conjugados com os dos rápidos para assegurar a função de recolectores e distribuidores"
Para este especialista, também presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro (APAC), "as unidades de negócios centram-se na procura dos melhores resultados financeiros, o que nem sempre resulta em favor de um melhor serviço, pois numa exploração conjunta, os benefícios de uns compensavam os prejuízos de outros".
Um exemplo: como os regionais dão prejuízo, cada vez há menos oferta, "mas se os horários destes fossem conjugados com os dos comboios rápidos, como eram dantes, os regionais traziam passageiros para os serviços de longo curso, onde a empresa ganhava mais por causa dos suplementos de velocidade, e o prejuízo era compensado".
É que, afinal, nem tudo era mau antigamente, como repetidamente o dizem ferroviários e passageiros. Há 20 anos a CP tinha quatro vezes mais estações com venda de bilhetes do que hoje, grande parte delas com horários ininterruptos e os clientes (na altura chamavam-se utentes) sabiam com o que podiam contar.
Há 20 anos comprava-se um bilhete na estação do Rossio para as Caldas sem qualquer dificuldade e não havia computadores nas bilheteiras.

Petição pela requalificação da Linha do Oeste já está online
Já está disponível na Internet a petição "Pela requalificação e modernização da infra-estrutura e pela introdução de um serviço ferroviário de qualidade na Linha do Oeste". Em http://www.petitiononline.com/plo1001/petition.html já se pode aceder ao texto que está também nas ruas a recolher assinaturas, com o objectivo de levar a Linha do Oeste à na Assembleia da República ainda no período de discussão do Orçamento de Estado para 2010.
Lançada na passada semana, conforme noticiado pela Gazeta das Caldas, a petição foi promovida por um grupo de cerca de meia centena de cidadãos, conhecidos pelos seus cargos políticos em diversos partidos, pelas funções que desempenham em entidades regionais, por serem empresários, académicos, médicos e advogados de mérito reconhecido. Além das assinaturas entretanto recolhidas nas ruas e em acontecimentos políticos, na passada terça-feira a petição já contava com mais duas centenas de assinaturas feitas online. São necessários quatro mil signatários para que o documento seja debatido no Parlamento.

A RESPOSTA DA CP
Gazeta das Caldas apresentou os casos referidos à CP, convidando a empresa a replicar, o que foi feito através do seguinte texto, que recebemos por correio electrónico e que transcrevemos de seguida:
Começamos por recordar que a CP tem desenvolvido nos últimos anos um trabalho de identificação de questões nos âmbitos apontados no seu email, bem como de criação de soluções para as várias necessidades detectadas. Estas soluções, como é do conhecimento geral, estão em curso e permitirão resolver a maioria destas questões.
Especificamente, no que se refere aos exemplos que seleccionou, estes não têm em consideração o facto de actualmente estar em vigor o DL nº58/2008.
Para além disso, a necessidade de distinção entre serviços foi reforçada com o Regulamento nº 243/2008, aprovado para o novo modelo tarifário dos serviços regionais. Com base neste regulamento, o preço para a utilização de dois serviços deve ser sempre definido pelo somatório dos preços de cada um dos serviços.
Por outro lado, a nova legislação pela qual a CP se deve reger conduz o operador a praticar preços por tipo de serviço e por origem e destino.
1º Exemplo (D. Guida)
Em 2005, a CP iniciou uma análise aos processos tarifários pelas várias UN's, num processo que culminou com a alteração da Tarifa Geral de Transportes, que remontava a 1975 e a publicação do DL 58/2008 bem como a aprovação de um novo modelo tarifário para os serviços quilométricos da CP (R e IR), tal como refere o Regulamento 243/2008. Foi esta alteração regulamentar que veio dar suporte ao início da reestruturação tarifária da CP tendo em vista a correcção das questões de incoerência tarifária e outros problemas identificados.
Neste momento a CP tem em curso:
A implementação do modelo tarifário para os serviços R e IR.Este processo, tal como previsto no Regulamento nº 243/2008, será concretizado em cinco fases. Apenas a 1ª fase está implementada. Só com a implementação da 5ª fase, será possível considerar que o modelo se encontra totalmente implementado, estando nessa altura conferida a regularização do sistema de preços destes serviços.
2. Quanto à dificuldade na aquisição de bilhete para o serviço Regional e Longo Curso, podemos adiantar que durante o mês de Fevereiro passará a ser possível a aquisição de bilhetes para estes serviços na estação do Rossio, o que, devido à forte procura e movimento do serviço suburbano, será realizado numa bilheteira autónoma, à semelhança do que acontece nas grandes estações (por exemplo, Santa Apolónia, Oriente e Campanhã).
3. Progressivamente, durante este ano, as restantes bilheteiras da zona urbana de Lisboa que se encontram sob gestão da unidade de negócios responsável pelo serviço desta zona, passarão a ter a disponibilidade de efectuar a venda de qualquer tipo de serviço nacional.No exemplo referido, Caldas - Rossio, é possível ao cliente, nas Caldas (bilheteira universal) adquirir um título para todo o percurso. No Rossio (bilheteira dedicada aos serviços urbanos de Lisboa) só é possível adquirir um título para o serviço urbano, portanto até ao Cacém.
Independentemente do número de títulos que o cliente é obrigado a comprar para efectuar a viagem, o valor final a pagar é igual (na ida e na volta).
2º Exemplo (A Maria)
O exemplo refere a Revalidação de um título do serviço de Longo Curso para o serviço Regional numa situação de circulação perturbada em que o recurso ao serviço Regional não resulta por opção do plano de viagem inicial do cliente. Nos casos em que o cliente altera o seu plano de viagem por sua vontade, convém referir que nos serviços de Longo Curso, o cliente pode pedir o reembolso até 30 minutos antes da partida do comboio sendo reembolsado da totalidade do valor do bilhete e adquirindo então o bilhete para o serviço Regional. No exemplo citado, o cliente tem direito ao reembolso do bilhete através do serviço de reclamações e reembolsos da CP, pelo que, deveria ter pago um bilhete regional e requerido o reembolso do bilhete original ou, pagando a revalidação (forma encontrada pelo revisor para não considerar o passageiro sem bilhete), solicitar ao serviço de reclamações e reembolsos da CP a devolução da quantia paga em excesso.3º Exemplo (A mãe do João)
A oferta de serviços CP é adequada à procura, às condições da infra-estrutura e à disponibilidade de material circulante. Neste sentido, não é possível a realização de serviços directos entre todos os percursos existentes ao longo do país, assim como também não é possível que os comboios de Longo Curso, Alfa Pendular e Intercidades, circulem em todas as linhas.A diferenciação de serviços está adequada ao mercado existente e às condições técnicas necessárias à realização dos mesmos.Naturalmente que, na medida do possível e tendo em atenção os factores já supracitados, a CP se esforça para a que a coordenação entre horários dos vários serviços seja assegurada, contudo isto não é possível para todos os comboios e ligações.Além disto, conforme já referido e de acordo com a legislação em vigor, o preço para a utilização de dois serviços deve ser sempre definido pelo somatório dos preços de cada um.
Por fim, gostaríamos ainda de chamar a atenção para o facto de que a existência de algumas incongruências tarifárias nos serviços da CP, resulta tanto em situações que não beneficiam o cliente, como noutras que claramente o favorecem. A título de exemplo, só para citar duas situações:
1 - A implementação da primeira fase do novo modelo tarifário do serviço regional implicou uma redução dos preços em vários percursos, consequência do ajustamento do preço dos escalões (beneficiando vários clientes).
2 - Em zonas de serviço urbano, quando a empresa reconhece necessidade de complemento de oferta de comboios deste serviço, é permitida a utilização de títulos urbanos nos comboios de serviço regional, em benefício do cliente.
A CP está atenta a todos os constrangimentos que estas mudanças têm causado nos seus clientes, e está a envidar esforços para minimizar a curto prazo os aspectos menos favoráveis do sistema tarifário, da sua rede de vendas e da sua oferta.
Ana Maria Portela
Marketing e Comunicação Corporativa
CP - Comboios de Portugal

OPINIÃO
Autenticidade e conveniência
Os casos aqui relatados são o exemplo perfeito daquilo que não deve acontecer quando se pretende modernidade e eficácia no domínio empresarial. Poderão dever-se à adopção de modelos organizacionais rígidos ou autistas, não alinhados com as necessidades e preferências do mercado, ou mesmo à primazia de interesses particulares e imediatos, face ao bem comum e à sustentabilidade a longo prazo. Mas do que não há dúvida, é que são violados princípios fundamentais do marketing de serviços, cuja factura será paga mais tarde ou mais cedo.
O atendimento e serviço ao cliente é orientado, no ambiente competitivo dos nossos dias, por princípios científicos de gestão, de que o marketing de serviços constitui o principal corpo teórico. Desde logo, porque os serviços representam mais de metade do produto e do emprego nacional; depois, porque é no domínio dos serviços que se estabelece parte significativa da diferenciação que determina a escolha dos clientes; finalmente, porque é sobretudo através dos serviços que se avalia a credibilidade do marketing e a inerente ética empresarial.
Excepto nas situações de monopólio e cartel, ou quando o Estado não regula e supervisa eficazmente a concorrência, as empresas preocupam-se e esforçam-se por satisfazer e fidelizar os clientes, acrescentando permanentemente valor à sua oferta. Esta é uma garantia de sobrevivência no mercado, geradora de valor para os accionistas e para a comunidade. Violar este princípio, por razões de personalismo ou imediatismo, é condenar uma organização ao fracasso, com significativas perdas para todas as partes.
O consumidor de serviços valoriza especialmente dois paradigmas: autenticidade e conveniência. Num mundo de aparências, em que a realidade é manipulada para parecer o que convém, a verdade é cada vez mais procurada antes de se tomar uma decisão de compra, sobretudo quando ela implica com a sensibilidade do consumidor. E quando o pressuposto é a confiança, qualquer engano frustra a expectativa e põe em causa a credibilidade da empresa ou seu agente, prejudicando a continuidade da relação. A autenticidade empresarial é, assim, uma condição essencial para se estar no mercado.
Por seu lado, a conveniência é o factor - facilitador, incentivador e diferenciador - que pode fazer toda a diferença, tornando a organização mais competitiva. São dois os domínios principais da conveniência, os quais representam custos (ou proveitos) não-monetários - tempo e energia (esforço) - aplicados aos momentos de decisão e acesso (pré-compra), transacção (compra) e consumo (pós-compra). Como em todos os aspectos do marketing, vale sobretudo a percepção do consumidor, servindo a realidade objectiva apenas para sustentar a imagem desejada.
Neste contexto, tanto a dificuldade na aquisição de bilhetes, como a incongruência no sistema de preços da CP, só podem ser explicados por uma inaceitável falta de integração de sistemas - tecnológicos, humanos, financeiros ou outros, o que aos olhos do consumidor se revela desajustado da sua disponibilidade de tempo e energia, nomeadamente quando comparado com outros sistemas de transporte e outros processos de atendimento e serviço ao cliente.
Rapidez e qualidade são, em geral, sinónimos de preço mais elevado, e vice-versa, mormente quando as alternativas são oferecidas pela mesma organização, independentemente de se apresentar com insígnias (pouco) diferentes. E resta a heurística mais básica, que é a de que quanto mais se consome mais se paga, mesmo oferecendo-se um desconto de quantidade. Assim julga o consumidor, que só entende o contrário quando isso lhe é explicado de forma clara e verdadeira.

José Rafael Nascimento

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