O Verão ainda não tinha começado, mas o Intercidades para o Algarve
ia cheio. José Nogueira cumpria um serviço de pura rotina no comboio
n.º 576, rumo a Faro. Algures entre Grândola e a Funcheira uma passageira
procura-o para lhe dizer que há um homem de 45 anos, na 2.ª classe,
que se sentiu mal e desmaiou. “Fui lá, verifi quei que o cliente estava
totalmente inanimado. Vi que não tinha pulso e que estava em situação
de paragem cardíaca. Accionei o sistema sonoro para solicitar a presença
de algum médico ou técnico de saúde que o pudesse socorrer.”
O revisor conta a história como se citasse de memória os regulamentos
da sua profi ssão para estes casos: “Ninguém se mostrou disponível nem
com conhecimentos para tal.” À sua volta acumulavam-se passageiros
curiosos à espera da sua decisão. Parar o comboio no meio da
planície alentejana às nove meia da noite de nada adiantaria. E ali estava
o revisor a olhar para um homem estendido no chão da carruagem...
1973. É na estação de Valado dos Frades (que serve Nazaré e Alcobaça)
que um recruta com ar franzino costuma apanhar o comboio para Lisboa
onde cumpre o serviço militar. José Nogueira tem 20 anos e vem de
motorizada desde a Boieira, a terra que o viu nascer e onde vive, no concelho
de Porto de Mós. Para guardar o velocípede na estação deveria pagar
7$50 por dia (3,5 cêntimos), mas com a cumplicidade do chefe de
estação Oliveira Paulo (falecido há poucos meses), o veículo fica
semiescondido numa esquina das casas dos ferroviários.
Sem o saber, a amizade que o liga ao chefe da estação será a sua porta
de entrada para um “emprego de costa direita”, mas com vida de nómada,
longe da sua Boieira. Oliveira Paulo virá a entregar-lhe os papéis para a
CP e a apadrinhar a sua entrada na empresa onde, em 1975, com a tropa
feita, uma comissão na Guiné e o 25 de Abril de 1974 de permeio, Nogueira
entra ao serviço a picar bilhetes. O tirocínio não podia ser mais difícil.
Estava-se em pleno período revolucionárioe se havia profi ssões mais
expostas aos excessos da revolução, a de revisor era uma delas.
“Era complicado, sobretudo com os militares.
Então os dos SUV [organização clandestina Soldados Unidos Vencerão]
nem imagina. Diziam ‘destrói a tua parte, os comboios são do povo’.”
Para o jovem Nogueira, o essencial era “nunca mostrar medo e dar a
entender que não estávamos sós, que a qualquer momento podia
aparecer mais alguém”. Não era esse o caso, porém, naquela tarde
de 16 de Junho de 2009, num comboio com ar condicionado
lançado a 190 quilómetros/hora pela linha do Sul, um passageiro
quase morto e “os clientes a olharem todos para mim à espera
que eu fi zesse alguma coisa”. Limitou-se a cumprir os
regulamentos: “Pus os meus conhecimentos em prática e fiz respiração boca
a boca. O passageiro acabou por vir a si.” O revisor até ficou surpreendido
quando, mais tarde, a hierarquia lhe atribuiu um louvor.
O que José Nogueira realça dessa noite atribulada foram as complicações
subsequentes – o Intercidades atrasara meia hora e houve passageiros
que perderam em Faro a ligação para Olhão e Tavira. “Fartaram-se de
protestar e tive que tratar dos táxis para os reencaminhar.” Nessa noite
foi mais a incompreensão dos clientes que lhe tirou o sono do que propriamente
o ter ressuscitado um morto.
in Publico
Carlos Cipriano
1 comentário:
boca a boca?
ai morrias,morrias...
se fosse gaja ainda se dava um jeito, agora um macho , morrias,morrias...
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