sexta-feira, 5 de março de 2010

Sinais de embuste


O regresso de Miguel Sousa Tavares à SIC com o seu programa "Sinais de Fogo" é uma boa notícia para a televisão e para o jornalismo, não só porque a investigação séria de assuntos que transcendem a agenda mediática é importante - e basta ver o contraste entre os temas importantes que foram abordados neste primeiro programa e a inenarrável insistência de outros jornalistas nas eventuais contradições sobre o número de mortos na catástrofe da Madeira - mas também porque MST é um excelente entrevistador, capaz de dosear a elegância e a boa educação com o rigor e a severidade das perguntas, como se pode apreciar na sua entrevista ao primeiro-ministro. Infelizmente, e embora Sócrates tenha sido hábil nas respostas, a verdade é que desmereceu a oportunidade desta entrevista, ao tentar justificar as suas decisões mais polémicas através de truques que trazia escondidos na cartola.

Foi isso que ouvimos do primeiro-ministro quando tentou explicar a prioridade que o seu governo atribui ao TGV entre Lisboa e Madrid, depois de MST o ter confrontado com a confissão da sua anterior secretária de Estado, segundo a qual esse projecto seria um investimento de recuperação impossível e com uma exploração naturalmente deficitária. Sócrates respondeu, então, que "as nossas empresas precisam é de estar ligadas aos mercados europeus para que possam colocar os seus produtos de forma rápida, de forma eficiente, junto do consumidor certo, no momento certo" e concluiu depois "não aceitar a nossa condição de país periférico e, por isso, devemos investir na rede de alta velocidade".
Ora, aquilo que o primeiro-ministro afirmou ser o seu desígnio estratégico, que justificaria este projecto e compensaria os sacrifícios que ele implica e que não desmentiu, contrasta com todas as decisões que os seus governos tomaram. É que a linha de alta velocidade entre Madrid e Lisboa, que está em fase de adjudicação, destinar-se-á exclusivamente aos comboios de passageiros. O mesmo sucede com a linha entre Porto e Vigo, que tendo sido inicialmente prevista para tráfego misto, deverá afinal ser projectada, apenas, para passageiros, a fim de reduzir o investimento total, conforme o ministro das Obras Públicas já anunciou.
Aliás, o primeiro-ministro tem que saber que o único investimento ferroviário em curso que permite o tráfego de mercadorias está a ser feito entre Badajoz e Évora, assegurando a ligação a Sines, onde aliás é fácil constatar que não há empresas exportadoras, mas apenas um porto de mar que serve como porta de entrada para importações para Portugal e Espanha. Ainda assim, essa linha de duvidosa utilidade para as nossas exportações está a a ser construída em bitola ibérica, o que quer dizer que as composições que porventura a venham a utilizar não poderão passar para além dos Pirenéus, onde vigora a bitola europeia que, aliás, já foi adoptada pela Rede de Alta Velocidade em Espanha, e que será utilizada em Portugal.
Nas últimas semanas ouvimos dos socialistas explicações inusitadas para justificar os projectos faraónicos. A propósito do TGV, ouvimos no Parlamento o deputado Candal falar das virtudes do projecto para os nossos emigrantes em França, e escutamos o inspirado ministro das Obras Públicas, sugerindo que o TGV irá transformar Lisboa na praia dos madrilenos. Mas, com toda a franqueza, prefiro essas explicações risíveis e imaginativas ao embuste a que o primeiro-ministro recorreu, num tema sério, que devia ser bem explicado aos portugueses.

Rui Moreira
in Jornal de Noticias
 
 
 

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