quinta-feira, 18 de março de 2010

Paradoxo a Alta Velocidade

"O projeto de uma rede de altas prestações em Portugal nasceu coxo, como muitos outros em Portugal. Qualquer resolução de um problema tem de passar por uma fase de diagnóstico que permita, de facto, objetivar esse problema e perscrutar as saidas, as fórmulas de resolução desse problema."



Na sequência desta aproximação ao polémico ‘Projecto de uma Rede de Alta Velocidade em Portugal’ e depois de idiotices publicadas
pelas pessoas que a irão construir, construí uma infografia a explicar uma das falácias transmitidas pela Rave:
Já havendo uma Linha do Norte, é necessária uma nova linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto?
a) Não. A existente é suficiente, uma vez que está a ser melhorada.
b) Não. A linha que temos só tem 200 anos, ainda está ali para as curvas.
c) Sim. A Linha do Norte está esgotada e já não é possível melhorar o tempo de viagem.
Ajuda: Hoje circulam mais de 600 comboios por dia na Linha do Norte. Já não é possível aumentar o número
de comboios nem realizar viagens mais rápidas, devido à convivência de comboios com velocidades
distintas (como os comboios de mercadorias, suburbanos, regionais, Intercidades e Alfa), que circulam todos
na mesma via. Foi a mesma coisa com os automóveis: com a Estrada Nacional 1 houve uma altura em
que a auto-estrada Lisboa-Porto se tornou inevitável.
A minha resposta é a seguinte:

As mentiras e meias-verdades servem apenas a leigos sem sentido crítico. Cabe-nos a nós, sociedade civil esclarecida, debater, e posteriormente

apoiar ou rebater as opções do Governo.
O projeto de uma rede de altas prestações em Portugal nasceu coxo, como muitos outros em Portugal. Qualquer resolução de um problema
tem de passar por uma fase de diagnóstico que permita, de facto, objetivar esse problema e perscrutar as saidas, as fórmulas de
resolução desse problema.
A Alta Velocidade não nasceu de parto semelhante, mas de um ‘desígnio nacional’ içado por um ‘projeto europeu’ que o sustentaria.
Não partiu de um esgotamento de capacidade das linhas existentes, nem de uma vontade de transferência de utentes do transporte individual
e do avião para o transporte ferroviário, nem mesmo de uma vontade de racionalização dos consumos energéticos em termos
de transportes. Nada disso. Nasceu da necessidade inadiável de ‘ligar Portugal à Europa’. Dizem-nos amiúde que fazer o contrário (não
construir a Alta Velocidade) significaria tornarmo-nos ‘uma ilha na Europa ferroviária’, isto porque a nova rede seria em bitola europeia
e os espanhóis fariam a migração de toda a sua rede para essa bitola e nós não e bla bla bla. A verdade é que Governo espanhol ‘quer’
fazer a migração da bitola da rede convencional para a rede europeia, mas ainda não a começou (nem começará nos próximos anos,
parece-me); as linhas de ‘Altas Prestações’ espanholas ainda não chegaram sequer à fronteira com a França. Isto significa que nós
(juntamente com a Espanha) sempre fomos uma ‘ilha na Europa ferroviária’ (bitola ibérica ≠ bitola europeia), e isto não irá mudar tão
cedo assim.
É que com a Alta Velocidade conseguiremos pertencer a essa rede (rede europeia de Altas Prestações), mas continuaremos isolados no
que toca ao resto da ferrovia. E vendo a pouca vontade dos governantes em construir linhas mistas de AV (passageiros+mercadorias),
e percebendo que pouca gente irá de comboio de Alta Velocidade para Praga, mas muita da mercadoria sim, percebemos que o sentido
certo não é construir uma rede de Alta Velocidade, mas sim migrar toda a nossa rede para a bitola europeia. Assim as mercadorias vão
e vêm, sem transbordos nem outros incómodos.
Nos países europeus que já têm eixos servidos pela AV o transporte ferroviário é extremamente popular, as redes ferroviárias
convencionais são razoavelmente desenvolvidas e existia uma real sobrecarga das linhas que serviam esses eixos entre cidades mais
importantes. O que não acontece por cá. E para além de nascido coxa, a AV foi crescendo coxa e torta, pobre coitada. A futura estação
de “Évora” será a 7 quilómetros da cidade, a de “Aveiro” a mais de 12 quilómetros. Em nenhum país que construa redes de igual gabarito
acontece algo de semelhante, mas a estória da estação de “Aveiro” é ainda mais esdrúxula. Localiza-se a 12 quilómetros do centro
de Aveiro, num local (Sobreiro??) onde existem apenas auto-estradas (pelo menos 3) e nenhuma cidade ou vila ou aldeia. E onde nem
sequer existe ferrovia. Gastam-se mares de dinheiro para pôr o comboio a circular a 300 km/h, mas chegando às cidades o projeto já é
de baixo-custo. É um delírio, felizmente adiado para as calendas.
Como já mostrei antes, 84% da população portuguesa mora num delgado território ao longo da costa. Não é uma fatalidade, é algo
que pode ser melhorado no futuro, mas é a realidade com que temos de trabalhar neste momento. Se somarmos a estes 84% da população
portuguesa uma parte boa da população galega que habita este eixo temos a 33ª maior megarregião do mundo, que vai de
Setúbal a Ferrol. O que não é de menosprezar.
A Rave, os nossos compinchas de Lisboa que pretendem fazer de nós um país moderno, desejam reforçar este eixo com uma linha de
Alta Velocidade / Velocidade Elevada, em colaboração com os amigos galegos. A justificação para a construir entre o Porto e Lisboa está
estampada acima e, como é óbvio, carece de racionalidade. É verdade que a Linha do Norte tem troços saturadíssimos; também é ver -
dade que tem troços por modernizar (a paragem da modernização foi exatamente justificada pelo projeto da rede de AV), algo que eles
não referem, o que faria com que a diferença entre as ligações atuais e a ligação futura fosse menos exagerada; não é verdade que,
por a Linha do Norte estar saturada, seja necessária uma linha nova.
As Linhas do Oeste e do Vouga atravessam longitudinalmente zonas densíssimas da megarregião, como é o caso de Leiria/Marinha
Grande/Caldas da Rainha no caso da primeira e o eixo Feira/S.J. da Madeira/O. de Azeméis/Albergaria/Águeda no caso da Linha do
Vouga. Entre elas existe o Ramal da Figueira da Foz, fechado há mais de um ano para obras. Com linha nova (45,5 km) conseguir-se-ia ligar a Linha do Vouga ao Porto (Boavista), integrando-se esta linha métrica na rede convencional, e ao Ramal da Figueira da Foz através

de Anadia/Mealhada.
Qualquer uma destas linhas tem utilizações atuais residuais, apesar de atravessarem territórios com grande densidade populacional. O
paradoxo explica-se sem grandes confusões. A Linha do Vouga é em bitola métrica (exige sempre transbordo nas estações terminais),
tem um traçado surrealista (na melhor aceção Daliana da coisa), excesso de passagens de nível (a maior densidade do país), composições
lentas e desadequadas e, por último, horários ineficazes. Pior sina seria impossível. Poucas pessoas a utilizam tendo como destino
o Porto, e talvez apenas o troço Águeda-Aveiro se salve no cômputo geral, por providenciar viagens diretas entre o centro de duas cidades.
A Linha do Oeste terá, provavelmente, os piores horários do país, um delírio medieval (se tivesse havido comboios na Idade Média,
seriam certamente semelhantes) que tem despertado a ira dos locais. E a política de transbordos não lembra a ninguém.
O que proponho? Para evitar os gastos faraónicos e as prazos atropelados da remodelação da Linha do Norte, cessar-se-ia a operação
das Linhas do Oeste e do Vouga e o Ramal da Figueira da Foz (este já fechado) durante dois anos. Durante esse período fazer-se-ia o
levantamento dos carris, a reconstrução da infraestrutura de via e a sua duplicação, a eletrificação, e a modernização das estações. Todas
as novas travessas a colocar seriam polivalentes, permitindo no início a colocação de dois carris (bitola ibérica, 1668 mm) e no futuro
um terceiro (bitola europeia ou mundial, 1435 mm). Teria também de ser feito um reajustamento do traçado da via, de modo a
permitir velocidades mais elevadas. Entre a Feira e o Porto construir-se-ia uma via nova, também eletrificada e dupla, assim como entre
Águeda e a Mealhada. Aqui o comboio utilizaria a linha do Norte por alguns quilómetros (+- 4, podendo haver uma triplicação ou
quadruplicação da via), seguindo para o Ramal da Figueira da Foz através de uma concordância. Os passageiros seriam transportados
em autocarros durante a obra.
A mais que óbvia perda de utentes durante este período seria compensada por uma solução simples: a partir do momento em que existissem
duas linhas paralelas entre o Porto e Lisboa, metade dos Alfas e Intercidades utilizaria uma e a outra metade a outra. E mesmo
que essas populações do Vouga e do Oeste perdessem de vez a vontade de utilizar o comboio, haveria um fluxo de comboios transportando
gente do Porto a Lisboa que traria de novo gente à deslocação ferroviária. Integrando a Linha do Vouga nos urbanos do Porto traria
vida nova a esta via, assim como comboios interregionais a percorrerem eixos da via (Porto-Figueira, Figueira-Lisboa).
É que convém não esquecer este dado: a nova linha que proponho serviria mais população que a Linha do Norte. Ninguém menospreza
o potencial da Linha do Norte em termos de população servida; o que dizer de uma linha que liga as duas metrópoles e serve ainda
mais população?
Linha do Norte: +- 2.150.000
Nova ligação: +- 2.400.000
*a infografia seria impossível sem a dedicada colaboração da Mafalda, a quem agradeço do fundo do coração.


publicado em http://www.nunogomeslopes.com/

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